O que é a psicose?
É a tragédia da falência do afeto
Afonso Rocha
7/10/20235 min read
A psicose é um “Foda-se o Mundo”.
É um ódio intolerável ao dentro e fora.
É uma defesa radical contra um Mundo que é sentido como demasiado incoerente, hostil e/ou negligente.
É quantificar ou “magificar” a vida por falta de qualidade afetiva.
É uma fragilidade quanto à tolerância ao simbólico (ao que chamamos real).
É a criação, ou a entrada num Mundo novo que impede a pessoa de compactuar com a moralidade cultural em vigor (ao que chamamos de realidade). Já que a moralidade cultural do mundo dessa pessoa não faz valer a vida. Cria-se ou entra-se então numa realidade nova para fazer frente ao apocalipse afetivo vivido.
A psicose não é então, em primeira instância, a doença em si, mas a defesa para fazer face à doença do Mundo externo e interno. Contudo, pode tornar-se a doença, já que ao entrar/criar num Mundo à parte, a pessoa pode fechar-se sobre si, impedindo novos mundos sanígeneos de se perpetuarem em si.
O universo mental ao invés de se expandir, vai consumindo-se a si mesmo com a convicção contrária. Metaforizando, podemos dizer que à medida que o seu “planeta vai saindo da órbita do Sol”, vai isolando-se, tornando-se mais frio. Cada vez com menos luz vai desenvolvendo uma “visão noturna” e torna-se cada vez mais difícil de abrir os olhos perante a luz solar.
A psicose é, portanto, maioria das vezes, uma mania para evitar a melancolia (que agrava a melancolia). É um “Se eu não sou amado, amar-me-ei a mim mesmo”, mas… Nunca se ama sozinho. E essa é a grande tragédia nas psicoses. Outra solução encontrada na psicose será uma melancolia para evitar a mania (que agrava a mania). É um “Se eu não me amar, hão de me amar”, mas sem se valorizar, cria-se uma passividade radical que coloca a pessoa sujeita ao destino da “sorte” e, mais sujeita a perder a sua (já pouca) estima, pode compensá-la através da mania. Podendo haver ciclos maníaco-melancólicos.
Mas que fique claro, todos nós, podemos ter núcleos psicóticos (que é diferente de estrutura), embora possam predominar os núcleos saudáveis. Da mesma forma na psicose, podem existir núcleos saudáveis. Aliás, Bion dizia que aquilo que diferenciava um esquizofrénico de um génio seria que no primeiro as partes não-psicóticas estariam ao serviço das partes psicóticas e no segundo, o inverso.
Enquanto na neurose a pessoa não “suporta” ficar só e procura o vínculo, na psicose a pessoa não suporta a intimidade do vínculo, já que essa intimidade vinculativa é sentida como perigosa. Isto é, mesmo que a pessoa procure o vínculo, é-lhe difícil suportar a intimidade e facilmente repele o vínculo, já que amar e ser amado, significaria a destruição da sua defesa psicótica, do seu mundo (à parte). Entrar na intimidade, significaria, não tanto perceber, mas sentir, que não foi amada, por quem mais quis que a amasse, ou em casos mais graves, seria sentir que o amor, afinal existe, mas esse sentimento não pode ser suportado (sem uma boa psicoterapia), já que colocaria a pessoa perante a questão, “mas afinal que significado teve a minha vida até hoje?” – o que abalaria toda a sua estrutura.
Podemos fazer uma analogia política: A psicose é a defesa contra a anarquia, contra a incoerência. Desenrolando-se o tempo e a história, a pessoa para fazer frente à anarquia pode desenvolver mecanismos super-organizadores (obsessivos) para dar ordem ao caos. Daí pode existir uma evolução para uma ditadura. Sair desta ditadura e desenvolver a democracia é o grande desafio na psicose, que só uma revolução poderá tratar. No entanto, há quem “prefira” viver em ditadura (já que a ditadura pode ser mais segura que a anarquia e pode ser percecionada como mais estável que uma democracia).
A psicose continua a ser um tema de investigação teórico-prática, exatamente por se tratar de um fenómeno repleto de fenómenos em si, assim será útil diferenciar as psicoses adaptativas (onde também poderíamos integrar os génios que Bion falava) de psicoses não-adaptativas:
Costumamos ouvir que a psicose é uma rutura com a realidade. No entanto, se olharmos para a psicose adaptativa, ela é a única estrutura que pode viver na realidade pura. Isto é:
“A realidade é a única coisa que não existe”. A maioria de nós, chama realidade à realidade porque partilhamos semelhantes construções daquilo que o mundo é, ou seja, porque acedemos ao registo do simbólico. Por exemplo, acreditamos que matar alguém de forma intencional será um ato criminoso e sujeito a punições ou restrições. Mas isso acontece porque criámos ilusões culturais partilhadas (símbolos) que vão formando aquilo que chamamos realidade. Para uma tribo sem qualquer conhecimento do Mundo exterior, matar alguém poderia ser até um direito. Ora, para vivermos numa sociedade “civilizada” precisamos de uma espécie de “manual moral/ético ou simbólico” que forme a nossa realidade coletiva. Assim, a psicose adaptativa não é a rutura com a realidade, mas a rutura com o simbólico cultural em vigor.
Na psicose adaptativa, a realidade nua e crua passa a ser quase tudo o que existe, o mundo torna-se de betão (daí eu insistir em dizer que pode existir uma criação, mas aqui trata-se mais de uma entrada num mundo à parte – porque a realidade já está criada – a criação deve-se depois a tentativas de unificar o caos, de legislar o Universo). As únicas pessoas que vivem na realidade pura são, portanto, as pessoas com uma estrutura psicótica (adaptativa), já que deixam de compartilhar com a cultura moral com que a maioria de nós partilha. Perdendo capacidade de acesso ao simbólico, o 25 de Abril não será tanto uma data que lembra a Liberdade, mas uma data que indica um dia do ano.
O pensamento torna-se concreto, porque a pessoa tem graves dificuldades em sentir, e sem sentir, deixa de conseguir distinguir aquilo que é certo do que é errado, a não ser através de intelectualizações (mas é devido a essas intelectualizações que se pode chamar uma psicose adaptativa, já que permitem a pessoa comunicar com o mundo simbólico).
Daí a psicose adaptativa quantificar a vida, porque sem sentir, é preciso intelectualizar o mundo para se adaptar ao simbólico cultural ao qual tem dificuldade em aceder.
Há uma negligência e incoerência não intencional que se torna num: “Fui muito mal-amado, não tive sorte” “Poderia eu controlar a sorte?”.
Já em relação às psicoses não-adaptativas, não há realidade nem simbólico, há o pensamento mágico, predomina o pensamento infantil, onde tudo é possível, onde não há quaisquer limites e por isso não existe um espaço onde seja possível pensar e elaborar. O pensamento torna-se fragmentado, porque não tem onde se ancorar – aí, uma sensação persecutória pode ser percecionada como uma verdadeira pessoa que persegue. Um pensamento pode tornar-se uma voz real.
Os desejos não precisam de ser realizados no real, porque o são de forma alucinatória. Caso os desejos não possam ser realizados de forma alucinatória, podem surgir realizações bizarras do desejo no real. E aqui sim, deixa de haver distinção entre o real, simbólico e o imaginário.
A psicose não-adaptativa é o verdadeiro “Foda-se o Mundo”, devido a maus-tratos, negligência e/ou incoerência.
É um “Não fui amado, nem nunca serei, porque o amor não existe”.